domingo, 31 de dezembro de 2017

* Adaptado de Alain de Benoist e Charles Champetier *

O imaginário da modernidade é dominado pelos desejos de igualdade e liberdade. Esses dois valores foram traídos no atual contexto. Isolados das comunidades que os protegiam, dando significado e forma à sua existência, os indivíduos agora estão sujeitos a um mecanismo de dominação tão grande que o que restou da sua liberdade é mera formalidade. Sofremos o poder global do mercado, da tecnologia, da mídia, sem sequer sermos capazes de influenciar no seu rumo. Tudo caminha inexoravelmente para o pior, e apenas assistimos. A promessa de igualdade fracassou de duas maneiras: o comunismo a traiu, instalando os regimes totalitários mais assassinos da história; o capitalismo a banalizou ao legitimar as mais odientas desigualdades sociais e econômicas em nome mesmo da igualdade. A modernidade proclama uma infinidade de direitos, sem se preocupar em providenciar os meios para exercê-los. O mundo moderno exacerba todas as necessidades naturais e cria continuamente necessidades novas, enquanto reserva o acesso a elas a uma pequena minoria, alimentando a frustração, a raiva ou a resignação zumbificante da massa excluída. Quanto à ideologia do progresso, que responde às expectativas humanas acalentando a promessa de um mundo em constante melhoria, essa está numa crise profunda. O futuro parece ser imprevisível, não mais oferecendo esperança, e deixando a todos amedrontados. Um cenário de desemprego endêmico, alinhado com a tendência de extermínio completo de várias profissões, e a desculpa de que ocupações novas serão criadas (até agora criou-se apenas o youtuber). Vemos cada geração se deparar com um mundo diferente daquele que seus pais conheceram. Combinando isso com uma acelerada degradação moral e cultural da sociedade, essa novidade constante que se vale de desacreditar os pais, a tradição, os mais velhos, o senso comum, a experiência, acaba por produzir amargura e não felicidade.
A destruição da natureza para o benefício do crescimento econômico, do desenvolvimento material e da globalização resultou num empobrecimento espiritual sem precedentes, e a ansiedade generalizada relacionada ao fato de viver num presente de incertezas, num mundo despropriado tanto de passado quanto de futuro. Assim, o mundo moderno deu à luz a civilização mais vazia que o homem conheceu: a linguagem publicitária da propaganda, do marketing, tornou-se paradigma de todo discurso social; a primazia do dinheiro impôs a onipresença do consumo, da mercadoria; o homem transformou a si mesmo num objeto de comércio, dentro de uma lógica perversa de hedonismo; a tecnologia engoliu e transformou o mundo natural em uma rede de materialismo, um mundo repleto de delinquência, violência e grosseria, no qual o homem está em guerra consigo mesmo e com todos, um mundo surreal de drogas, realidade virtual e esportes supervalorizados pela mídia, plastificados, engarrafados e vendidos, porque tudo tem que ser vendido, e o que não pode ser vendido tem que ser descartado. Cultura e religião são úteis ao capitalismo, desde que sejam produtos. Com a automação e a robotização do trabalho, até a vida no campo (num fenômeno que antes era culpado apenas pela seca, e quando se resolvesse a seca, seria resolvido) foi abandonada em troca de subúrbios e favelas insalubres em megalópoles monstruosas. O indivíduo solitário se funde a uma multidão anônima e hostil, enquanto as relações sociais, políticas, culturais e religiosas se tornam gradativamente incertas e indistintas. Aqui está sua igualdade. Você é livre para morrer.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Meu vizinho


Na última noite eu verdadeiramente sonhei que Jesus estava morando aqui ao lado.
No sonho conversei com Ele como quem conversa com um velho amigo,
e sinto vergonha, mas não evitei o questionamento: 
como podia Ele ter escolhido morar ali (em vez de comigo),
na casa de quem eu odiava tanto em pensamento?
E Ele obviamente me respondeu que eu devo amar o meu vizinho.
Acordei muito triste, pois como posso obedecer-Te, meu Senhor?
Se me enviasse a cem guerras, eu iria mesmo sozinho,
estaria mais preparado.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Outro soneto para meu pai

O senhor nunca conta seus sonhos
E nosso Botafogo sempre vai mal
Torcemos para um time bisonho
E nascemos no país do carnaval.

Em muitas coisas pareço contigo
Mas tua calma parece ser maior.
Espelho-me em ti, velho amigo
Ao tentar fazer sempre o melhor.

Contaram-me que quando eras novo
O senhor era muito mais nervoso
Até apelidaram-te, teus irmãos

Então me ensine, pai: como eu faço
Para conseguir uns nervos de aço
E nunca ser chamado de "Alteração"?


09/07/2016

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Uma faca só lâmina



(João Cabral de Melo Neto)


Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A.
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B.
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C.
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se embotam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D.
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

E.
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que esta tem as mãos férteis.
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F.
Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.

G.
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.

H.
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa faca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I.
Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.

*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.