quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Antiamericanismo: o recalque do oprimido*

A invasão do Iraque evidenciou que o antiamericanismo pulsa no mundo como um recalque do oprimido. À menor possibilidade, aflora, exacerba-se, ganha as ruas, os sites, a mídia. A “velha Europa”, na expressão de Donald Rumsfeld (a terceira das Parcas), limpa o sangue derramado nos últimos dois séculos para entoar uma cantilena que faz a mímica do pacifismo. As ditaduras muçulmanas ameaçam alçar Samuel Huntington ao panteão de segundo profeta e acenam para o Ocidente com um choque de civilizações. No Brasil, até a CUT esconde sua vergonhosa e pusilânime subserviência ao governo Lula com um grito de guerra: “Imperialistas, fora do Iraque! Não se troca sangue por petróleo”.

Tais reações têm um pretexto bastante verossímil: cada um dos motivos alegados por George W. Bush para empreender a sua expedição punitiva a Bagdá foi desmoralizado pelos fatos. Restou a obviedade de que Saddam Hussein era um ditador. Ok, mas, como ele, quantos há? E a grande maioria formada por aliados de Washington. É preciso, para que se possa avançar, fazer a distinção entre a razão prática dos Estados e governos e a voz rouca das ruas, eventualmente irmanadas no mesmo antiamericanismo.

A Jacques Chirac, por exemplo, pouco importa a moralidade do ato americano — e a melhor prova é a lei de imigração que ele defende para a França. Não é um humanista; quer-se estrategista. Seu interesse objetivo é organizar um pólo europeu de resistência a uma bipolaridade que os estudiosos americanos já dão como certa. Em trinta anos, restará um adversário dos Estados Unidos no planeta: a China, que cresce a uma taxa entre 7% e 9% ao ano e poderá concentrar, no prazo dado, 25% do PIB mundial. Chirac e alguns outros líderes forçam para que se crie um triângulo e querem atrair a Rússia — que passaria a ser européia pela primeira vez em sua história — para esse terceiro vértice europeu.

As ditaduras muçulmanas, especialmente as árabes, cobram a ajuda do “porco imperialista” para conter seus fundamentalistas, mas rejeitam os “valores decadentes” do Ocidente, como a democracia. Até o governo brasileiro tirou uma casquinha. Num discurso contra a guerra, o presidente Lula conjugou o verbo quatorze vezes na primeira pessoa. Duda Mendonça não teve dúvida: “A nossa guerra é contra a fome”. Os Estados Unidos, ao menos, venceram a deles…

Já a reação das ruas, essa foi pautada, claro!, por bons sentimentos, mas também por recalque e ignorância, compartilhados, muitas vezes, por todos nós — a menos que estivéssemos ideologicamente convencidos de que se travava no Iraque um dos prenúncios do Armagedon. A verdade é que, cidadãos comuns, repugna-nos a constatação de que os impérios têm uma essência amoral. Tendemos a reagir mal à obviedade de que, não impusessem a sua vontade, seriam outra coisa. O nosso primeiro impulso, anterior à compreensão, é o furor judicioso, a sentença moral. Cada bomba que caía sobre Bagdá parecia querer confirmar a impressão de que os Estados Unidos só chegaram a ser a maior potência da Terra porque se impuseram pelo terror, pela guerra, pela morte, pela violência, pelo assassinato, pela força, pelas armas. E tudo isso é mentira! Reagíamos como tolos, embora as nossas motivações fossem boas e justas — tolice e boas intenções não se excluem e costumam arder juntas no inferno.

Aqui, é forçoso lembrar Edward Gibbon (1737-1794) e de sua magnífica obra Declínio e Queda do Império Romano. Num dado momento, o autor aborda o que chama “tríplice aspecto” sob o qual “o progresso das sociedades” pode ser avaliado: 1) o talento extraordinário e individual; 2) a formação de indivíduos ou pequenos grupos voltada para a conhecimento; e, finalmente, o terceiro aspecto, de que reproduzo alguns trechos: “(…) Felizmente para a humanidade, as artes mais úteis (…) podem ser exercidas sem a necessidade de talentos extraordinários (…), sem os poderes de um só ou a união de muitos. (…) Desde a descoberta primeva das artes, a guerra, o comércio e o ardor religioso difundiram entre os selvagens do Velho e do Novo Mundo esses dons inestimáveis. Eles se propagam aos poucos e jamais poderão perder-se. Podemos, portanto, chegar todos à aprazível conclusão de que cada época da história do mundo aumentou e continua a aumentar efetivamente a riqueza, a felicidade, o saber e quiçá a virtude da raça humana”.

O autor se debruçou sobre treze séculos de um império que conjugou domínio territorial e inquestionável poder de impor uma visão de mundo, o que se estendeu das artes à religião, passando pelo direito. Nem guerras amorais nem imperativos éticos o impediram de reconhecer que, com ou sem gênios individuais, o sumo das conquistas dos impérios restou para a espécie humana. Quantos de nós, os humanistas de pé quebrado, temos claro que a tecnologia de guerra serviu — e serve ainda, a exemplo da Internet — para prolongar e tornar ainda mais venturosa a trajetória humana na Terra? Quantas foram as conquistas científicas que o capital americano (ou a concupiscência da indústria farmacêutica) gerou neste tempo e quanto isso contribuiu para elevar a expectativa de vida mesmo em países pobres como o Brasil?

Uma nação que se negasse a pressionar Kruchev com o fim do mundo, na chamada crise dos mísseis cubanos, ou que se abstivesse de impor sua vontade a Bagdá teria feito o primeiro transplante de coração ou reproduzido, desta feita no éter, as grandes navegações do século XVI? Um Portugal ou uma Espanha que reconhecessem os valores dos “povos da floresta” teriam se lançado ao mar? Um líder que tivesse obedecido ao princípio senatorial e se deixado intimidar pelo Rubicão teria nos legado o direito romano como herança? A única nação com poder de dissuasão e de ataque forte o bastante para impor sua vontade deveria se eximir de fazê-lo como se o que existe — o seu poderio — devesse ainda reivindicar o estatuto de realidade de fato?

Reparem, leitores, não estou aqui a defender os Estados Unidos, muito menos o horror da guerra. Se tenho de matar uma barata, luto entre minha hesitação e sua repugnante rapidez. Ocorre que faz crer o antiamericanismo de ocasião, formado por verdadeiros “anticândidos” consumidos pela ignorância e pelos bons sentimentos, que rumamos para o pior dos mundos, para o abismo. Junto com Gibbon, apesar de tudo, convido-os a distinguir uma linha inextinguível de contínuo aprimoramento da civilização humana. Quando foi mesmo que a espécie viveu dias melhores? A saudade do que não tivemos, o Eldorado perdido, nem mesmo reacionária é. É só uma bobagem.

Sim, o mundo parece ser maior e mais complexo do que pode alcançar a compreensão de George W. Bush. O ataque ao Iraque, sem a clara concordância do Conselho de Segurança da ONU e por motivos comprovadamente mentirosos, jogou as nações num vazio jurídico. É tudo verdade. Mas Gibbon nos socorre e nos faz lembrar que a tragédia da vez pode ser uma quase aborrecida repetição de circunstâncias, preenchida com atores novos. É claro que isso não absolve os Estados Unidos de um ato imoral. Mas nem a guerra nem seus desdobramentos são julgados por tribunais morais, ainda que assim eles se queiram. Considero um imperativo ético que todos prefiramos a paz à guerra, desde que a primeira não seja a qualquer preço. Ameaças finalistas sempre semelham o apocalipse brandido por profetas de si mesmos.

Temos muito a aprender com aquela mesma América onde Tocqueville concluiu que os males da democracia se curavam com ainda mais democracia — e, quem sabe?, algo a ensinar. Sobre o antiamericanismo, crescente também por aqui, talvez nos cumprisse responder por que, tendo tão poucos motivos para nos identificar tanto com o “agressor” como com o “agredido”, escolhemos logo a “vítima”. Mas isso fica para outra hora.

* Originalmente publicado na revista BRAVO! nº 69, de junho de 2003. Integra o livro Contra o Consenso (Editora Barracuda)

Por Reinaldo Azevedo

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